Coerção e consenso na política - Jacob Gorender
O Pensamento Revolucionário: da
burguesia ao proletariado
O pensamento
revolucionário burguês, a partir do século XV até o século XIX, se desdobra em
ampla e diversificada frente de disciplinas, de regiões do trabalho
intelectual. Na frente da Filosofia, afirma a primazia da Razão diante da Fé, o
direito à dúvida metódica, à pesquisa, o afastamento de quaisquer limites de
natureza sobrenatural para a esfera do conhecimento. Na frente do Direito, com
o jusnaturalismo, afirma os direitos naturais do homem, que nenhuma instituição
social pode retirar.
Na frente da teoria do
Estado - que é explicada de várias maneiras, mas unânime na idéia de que não
pode haver um Estado sobre-humano, de origem divina o novo pensamento
burguês declara que o Estado nasce da sociedade, por conseguinte, deve ter tais
ou quais compromissos
com a própria sociedade. Este processo discursivo vai terminar, como se sabe,
na teoria do contrato social, de Rousseau, depois de passar por Locke, Spinoza,
Hobbes e outros. É a afirmação, portanto, de um direito igualitário dos
cidadãos, em oposição aos diretos dos estamentos e dos privilégios estamentais.
Cria-se o conceito moderno de cidadão, separa-se a ordem privada da ordem
pública.
No terreno da Ética, a
burguesia apresenta uma nova teoria das relações sociais, justamente a ética do
indivíduo, que nela tem o seu centro e soberano. Sob a nova perspectiva, os
interesses individuais, ao invés de conflitantes, tendem a se complementar.
Desta harmonização dos interesses individuais deveria surgir a própria harmonia
social.
E finalmente a
Economia Política, criada por esse pensamento revolucionário burguês. Uma
teoria econômica que veio para se afirmar contra a velha ordem feudal dos
privilégios, dos monopólios, dos regulamentos e das prescrições restritivas.
Por isto mesmo, proclama, como a mais natural e conveniente para os homens, a
liberdade da atividade econômica, a soberania do mercado, a tendência
espontânea do mercado de regular os diferentes interesses individuais dos
vários produtores. Para a burguesia, que então afirmava sua supremacia, os diversos
tipos de coação extra-econômica já eram dispensáveis. Tanto para ela, como para
a classe dos trabalhadores os operários que já estavam nas manufaturas e iriam entrar nas
fábricas com a Revolução Industrial bastava a coação meramente econômica. O fato dos trabalhadores estarem
despossuídos dos meios de produção e de subsistência os forçaria, pela própria
necessidade, pelo hábito criado com o passar das gerações, pela obrigação desde
a infância, a procurar as fábricas e a considerar natural a circunstância de
viver de um salário. Salário que seria regulado, no final das contas, pela
existência do exército industrial de reserva, combinado com a procura e a
oferta de mão-de-obra no mercado.
Em face disso, o que
deveria ser o Estado para a burguesia revolucionária? Um Estado liberal, apenas
com a função de fazer cumprir as regras do jogo de mercado, porém não
intervindo neste. Um Estado que puniria aqueles que infringissem as regras,
aqueles que violassem justamente esta ordem burguesa, sinônimo de ordem
pública. O Estado burguês não teria função econômica direta. Não faria como o
Estado absolutista, promovendo fábricas, concedendo monopólios e privilégios.
Destoa desse
pensamento, é claro, o próprio Hegel. Na sua Filosofia do Direito, o que ele
apresenta é o Estado constitucional, mas não liberal, uma vez que escrevia como
filósofo de um Estado ainda atrasado naquele momento sob o aspecto da revolução
burguesa.
Estas são as frentes
principais do pensamento revolucionário burguês. Talvez eu tenha omitido alguma
delas, mas acredito que apresentei as mais importantes.
Em que frentes se
desenvolve o pensamento revolucionário proletário no final do século XVIII quando emerge a
Revolução Francesa e no transcurso do século XIX, chegando aos nossos dias?
Passada a fase das
utopias que
constróem idealmente sociedades coletivistas autogestionárias e entrando na
obra dos fundadores do socialismo científico, de Marx e Engels, podemos
observar que o pensamento do proletariado revolucionário e sua elaboração teórica se apresentarão também
de maneira esquemática nos seguintes terrenos:
Em primeiro lugar, na
crítica da Economia Política. Esta é a primeira frente, a principal, à qual se
dedicará o grande fundador do pensamento revolucionário do proletariado: Marx,
com a colaboração de Engels. Pela própria sistemática da sua concepção geral do
materialismo histórico, que confere a instância fundamental ao que chamamos de
fator econômico, Marx considerou que devia atacar primeiramente a Economia
Política burguesa, que deveria criticá-la. Desta crítica surge o desvelamento
das contradições do capitalismo, surge uma nova teoria econômica do sistema
capitalista, em que se demonstra que este sistema não pertence à natureza da
espécie humana, e, por conseqüência, é histórico. O capitalismo é um sistema
que surge em determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas do
próprio homem. Por conseguinte é transitório e deve desembocar pelo
desenvolvimento das contradições internas na substituição por outro sistema, que seria o sistema
socialista.
O pensamento do
proletariado se apresenta, portanto, em primeiro lugar através da crítica da
Economia Política burguesa e de uma teoria econômica oposta a ela. É a crítica
principalmente de Adam Smith e de Ricardo, que vai servir de base para o
desenvolvimento das teorias econômicas posteriores: Kaustsky, Rosa Luxemburg,
Lenin, Hilferding, Bukharin e os contemporâneos. O pensamento econômico
marxista assumiu, portanto, um lugar central na elaboração de uma concepção revolucionária
do proletariado. Apoiados no terreno preparado pelo idealismo clássico alemão e
já atuando como intelectuais orgânicos dentro do movimento operário, Marx e
Engels puderam lançar os fundamentos da dialética materialista e de uma teoria
geral da sociedade. Concepções necessárias à edificação de um pensamento
revolucionário que se propunha a ganhar o aval de ciência.
No entanto, é
sintomático que Marx se concentrasse nos trabalhos de Economia Política e só
desenvolvesse a teoria do materialismo dialético e histórico no corpo das obras
econômicas e historiográficas. Já se disse que O Capital é a Lógica de Marx. Em
parte, e somente em parte, Engels procurou suprir esta lacuna.
Daí que a segunda
frente mais importante no desenvolvimento do pensamento do proletariado viesse
a ser a teoria da revolução. É que, neste terreno, as indagações vinham com a
imposição da urgência: o que era a revolução na época das contradições do
capitalismo? Qual a sua trajetória previsível? Que papel teria nela o proletariado
em face das outras forças sociais?
Tais indagações vão
constituir tema de constante polêmica no movimento comunista até os dias de
hoje.
Desdobrando-se da
teoria da revolução, vem a teoria do partido revolucionário. Esta ainda não tem
lugar elaborado em Marx e Engels. Mas, em seguida, com a II Internacional,
assume lugar proeminente. São sobretudo os teóricos russos, com Lenin à frente,
que vão erguer o corpus da teoria do partido revolucionário. Teoria que, nas
suas origens, ficou marcada pelas condições peculiares da luta revolucionária
na Rússia czarista e, mais tarde, da construção do socialismo na União
Soviética.
A teoria do Estado se
segue em ordem de importância no pensamento revolucionário do proletariado.
Contudo, não podemos deixar de concordar com Norberto Bobbio que esta é uma
frente insuficientemente abordada e menos avançada do que as outras. A tal
ponto que, ainda segundo Bobbio, não existiria uma teoria do Estado no universo
marxista.
Mas o próprio pensador
italiano reconhece que se Marx não se dedicou à teoria política com tanto
afinco quanto à teoria econômica, o que nos legou já é suficiente para lhe dar
um lugar eminente, o lugar de um verdadeiro marco na evolução das idéias
políticas. Pois é de Marx a tese de que o Estado não é uma instituição para o
bem comum, acima das classes sociais, conforme idéia generalizada no pensamento
político anterior. Marx foi o primeiro a declarar que o Estado é o Estado de
uma classe particular. Esta ligação orgânica do Estado com uma determinada
classe, com a classe dominante, é essencial no pensamento político marxista, é
a contribuição específica mais importante de Marx. O fundador do socialismo científico inverte a relação de Hegel, de
Estado-sociedade civil, do Estado criador da sociedade civil, para a sociedade
civil-Estado. A sociedade civil, como o reino em que os indivíduos realizam
suas necessidades materiais, suas necessidades econômicas, é que será a
criadora do Estado, a base do Estado. No entanto, Marx, como Engels, assim
como Lenin, irão dar ênfase sobretudo ao Estado como instrumento de coerção o Estado é a
coerção legítima. Daí poder funcionar como regulador dos conflitos sociais entre as várias classes,
porém como um regulador que age de maneira a preservar a ordem existente e o
modo de produção em vigência, assim como a formação social que confere
supremacia à classe dominante. No caso, a classe dominante burguesa.
Mesmo liberal, este
Estado não se ausenta da vida econômica. Sua ausência é uma ilusão ideológica,
pois o Estado liberal intervém na ordem econômica ainda que evite a gestão
direta de empresas.
Marx dá novo sentido à
palavra ditadura, ao falar em ditadura de classe. Originalmente, o termo
ditadura vem da antiga Roma, designando um governo necessariamente provisório,
admitido em situações conflitivas, convulsivas, que deveria pôr ordem na vida
pública, mas por um prazo determinado, retirando-se em seguida. O termo foi
adotado na literatura política, com esta acepção de transitoriedade, até Marx.
Para Marx, ditadura de classe será sinônimo de dominação de classe, designando
uma situação duradoura.
Por que a classe
dominante exerce dominação de maneira discricionária, como uma ditadura? Porque
ela faz o que lhe interessa e para isso não há limite real na lei. As leis
obedecem aos interesses da classe dominante e se violam também no interesse da
classe dominante. Mas a ditadura, por sua vez, pode ser exercida sob diferentes
formas políticas. No caso da burguesia, tanto se exerce sob a forma de um
regime plenamente discricionário, como através da república democrática,
através de governos representativos e que, na linguagem usual, seriam
aparentemente o oposto da ditadura.
Em virtude de
semelhante ambigüidade, o termo ditadura dá origem a numerosas confusões. O
fato de, na linguagem mais usual, nós só o empregarmos como expressivo de
governos discricionários, não nos permite compreender que, na terminologia de
Marx, ele tem sentido de discricionário para a dominação burguesa geral, não se
restringindo à forma que esta assume nos governos autoritários. A ditadura de
classe pode se apresentar também sob a forma de governos parlamentares
representativos e constitucionais, obedientes à legalidade.
Com relação ao novo
Estado socialista, a teoria política foi pouco elaborada, tanto por Marx e
Engels, como por Lenin. Salienta-se, aí, a idéia da destruição do aparelho do
Estado burguês, e a sua substituição por um novo aparelho de Estado. Em seguida
a idéia de deperecimento do Estado, ou seja, da sua extinção gradual. O que
significa, de um lado, a recusa da concepção reformista de que o Estado burguês
pudesse adaptar-se às necessidades da futura dominação do proletariado. E, por
outro lado, a recusa do princípio do anarquismo, segundo o qual o Estado deve
ser extinto de uma vez de maneira imediata, assim que for derrubada a
burguesia. Segundo os teóricos marxistas, sendo a revolução um ato autoritário
por excelência, o proletariado, que se apossa do poder, não dispensará o Estado
como instrumento de afirmação desse mesmo poder. O proletariado tem necessidade do Estado, o
qual não pode desaparecer exatamente no momento da revolução. Trata-se de um
novo tipo de Estado, que necessariamente deve atravessar uma transição: a da
extinção gradual. Talvez pela previsão de que o Estado do
proletariado fosse necessário, mas transitório, destinado a se extinguir, é que
não se teorizasse sobre o que seria este Estado.
Esta seria uma razão
de ordem teórica. Existem também motivos de ordem histórica, pela forma como
ocorreram as revoluções, primeiro na URSS, depois em outros países do Leste
Europeu, na China, em Cuba etc. Neste ponto, eu dou razão a Norberto Bobbio. O que aconteceu, na realidade, em todos
esses países, é que o Estado, ao invés de realizar um processo de
deperecimento, iniciou um processo de expansão. Porque, ao contrário do
previsto por Marx e Engels, o Estado assumiu os bens de produção em nome da
sociedade. Com isso, adquiriu um poder que nunca teve antes em nenhuma
sociedade burguesa. O Estado se expandiu mais do que se poderia prever. O processo de sua
extinção não se iniciou ainda em nenhuma sociedade do chamado socialismo real e
uma teorização a respeito ainda está por ser feita.
Estado, Coerção e Consenso
Vamos deter-nos,
agora, na contribuição especial de Antônio Gramsci.
Em Marx, Engels e
Lenin, foi dada ênfase sobretudo à face coercitiva do Estado, o Estado-coerção.
As formas consensuais de dominação de classe não mereceram tanto esforço
teórico. Não que se omitisse o problema da ideologia. Marx falou dela e
declarou que a ideologia da classe dominante é a ideologia dominante. Neste
sentido, os teóricos marxistas estudaram as diversas ideologias da burguesia,
com algumas incursões no terreno da Filosofia. Estudou-se a Religião, até certo
ponto a Arte, muitíssimo pouco a Ética. Neste ponto, não se pode dizer que há
uma teoria da Ética socialista ou algo que mereça este nome. Há certas
contribuições, mas não possuem nível teórico à altura do que o marxismo
elaborou no terreno da economia, na teoria da revolução e na teoria política do
partido.
Tanto Engels como
Lenin notaram a submissão ideológica do proletariado inglês à burguesia
inglesa. Mas Lenin, em particular, atribuiu isso ao fato de o imperialismo
inglês ter a disponibilidade de oferecer migalhas, do que saqueava do seu
império, ao proletariado inglês. Subornava, corrompia o proletariado inglês.
Mas o estudo dos processos ideológicos que tornavam essa submissão consolidada,
que davam a ela estabilidade, um prolongado grau de duração, isto não foi
objeto de estudo por parte de nenhum daqueles grandes teóricos.
É com Gramsci que irão
ser estudados os processos consensuais de direção e de dominação. Ele ressaltou
a complexidade das funções do Estado. O Estado com sua força legitimada, o
Exército, a Polícia, a Administração Publica, os Tribunais etc., órgãos
depositários da função de coerção. Esta é uma face. A outra face é a extensão
do Estado, que ele chamou de Sociedade Civil, num sentido diferente de Marx. A
Sociedade Civil seria o âmbito em que se moveriam as instituições destinadas a
obter o consenso das outras classes sociais que formam com a classe dominante
aquele bloco histórico, que dá estabilidade à formação social. Aqui entram a
Igreja, os Partidos Políticos, os Sindicatos, as Escolas, obviamente a
Universidade, a Imprensa (hoje se incluiriam o rádio e a televisão, com sua
tremenda força de comunicação), a Alta Cultura, o Senso Comum a chamada
sabedoria popular, com os provérbios, o folclore etc. Este seria o terreno onde
se formariam as consciências que aceitariam a ordem vigente. Mas, aceitação, aqui, não signiñca
submissão passiva e resignação ou ilusão de uma ordem ideal. Uma classe
subalterna pode aceitar determinada ordem social, mesmo vendo-a injusta. Porém,
ao considerá-la eterna, impossível de mudar, adquire a confiança de que poderá
melhorar sua posição, conquistar reformas. Nesse sentido, ela dá o seu
consenso, sua adesão e apoio à existência dessa ordem social. E a isto que
Gramsci chama de hegemonia de uma classe dirigente. Uma classe é hegemônica, é
dirigente, na medida em que consegue obter o consenso das classes subalternas,
na medida em que supera a visão corporativa, em que não pensa apenas nos seus
interesses imediatos e consegue interpretar os interesses das outras classes
sob o enfoque do seu domínio, da sua posição de supremacia. Se a classe
dominante consegue fazê-lo, obtém o consenso. Se ela se restringir a uma visão
corporativa, a interesses imediatos, então perde o consenso.
A burguesia conseguiu
o consenso da classe operária e de outras camadas de trabalhadores com seu
vasto trabalho, ideológico e multissecular. No processo de formação de sua
hegemonia, ganharam a adesão dos camponeses e do operariado industrial nascente
e puderam realizar assim a sua tarefa revolucionária.
É indispensável a
função de dominação, a função de coerção, mas a função de direção pode
precedê-la. Gramsci dizia que uma classe pode ser dirigente, antes de ser
dominante. Nesse terreno, é que também o pensamento de Gramsci se voltou para o
papel dos intelectuais e nenhum outro teórico marxista deu contribuição tão
criativa para o estudo do papel dos intelectuais. Porque são os intelectuais,
exatamente, os funcionários do consenso. São eles que trabalham como ideólogos
para a obtenção do consenso como homens da Igreja, como dirigentes de
sindicatos, de partidos políticos, como jornalistas, produtores da alta
cultura, produtores de arte, seja a grande arte ou a arte popular etc.
Mas basta ter o
consenso para ter a dominação? Aqui a divergência é muito grande entre os
intérpretes de Gramsci. A obra de Gramsci, como todos sabem, foi escrita no
cárcere em condições muito penosas, obrigando-o a disfarçar o que escrevia,
pois estava sob vigilância constante dos carcereiros. Trata-se de uma obra
escrita durante cerca de dez anos, na forma de anotações, sem nenhuma pretensão
de publicação. Assim, esta obra fragmentária tem contradições, ziguezagues,
voltas e reviravoltas. A propósito do assunto, aqui tratado, uma das
interpretações é a de que, para Gramsci, a classe que se torna dirigente, que
obtém o consenso, já pode se tomar dominante exatamente por isso. Semelhante
interpretação omite o momento da ruptura, que é o momento revolucionário. Penso
que Gramsci não via as coisas desta maneira reformista. Pelo conjunto do que
escreveu e por certas passagens muito incisivas, sua idéia era a de que o
consenso preparava a dominação. A conquista da hegemonia prepara a ruptura
revolucionária, que é necessariamente violenta e não dispensa a coerção, quer
dizer, a função coercitiva do Estado não pode ser dispensada pelo próprio fato
de que facilita a obtenção do consenso.
Consenso e coerção
fazem um jogo, em que um elemento aumenta à custa do outro, em certas
conjunturas, mas, em nenhum momento, qualquer dos dois desaparece. Para fundamentar
esta teorização, Gramsci se apoiou na historiografia das revoluções Francesa e
Italiana. Duas revoluções, uma muito radical e vinda de baixo, que foi a
Revolução Francesa, e outra, uma revolução de cima, passiva, que foi a
Revolução Italiana, realizada mais por um ato da classe burguesa, através de um
Estado italiano, o de Piemonte, e, por conseguinte, com uma iniciativa vinda de
cima.
Quero acrescentar que
dou razão, sob este aspecto, a Perry Anderson. Não a tudo o que escreveu sobre
Gramsci, porque conclui que ele foi um reformista. Na minha opinião, Gramsci
foi um revolucionário. Mas creio que Anderson tem razão quando afirma que o
próprio Estado considerado à parte da sociedade civil já é consenso, ou pode
prefigurar também o consenso. Nem sempre ele é somente coerção. O Estado representativo
parlamentar pode ter caráter consensual. Por seu próprio mecanismo, apela para
o consenso das classes subalternas, porque lhes oferece um jogo do qual elas
podem participar: a periodicidade das eleições, a liberdade de organização de
partidos originários das classes subalternas, com a possibilidade legal desses
partidos chegarem ao poder, desde que aceitem as regras do jogo do Estado
representativo. Assim, não só o que Gramsci chamava de sociedade civil pode ser
consensual, também o Estado como tal pode sê-lo. Eu acrescentaria que o
consenso, necessariamente, nem sempre é democrático, também pode ser despótico.
Ou seja, também pode existir um despotismo consensual. Nos dias atuais, o
fundamentalismo xiita não oferece no Irã um consenso ao despotismo do aiatolá
Khomeini?
A obtenção do consenso
nem sempre se traduz através de canais ou de formas representativas e
democráticas, mas pode ter, em alguns casos, manifestação através de formas
despóticas. O que varia é a correlação entre coerção e consenso.
Num Estado parlamentar
democrático, a coerção é predominantemente latente, manifestando-se
ostensivamente de maneira tópica, nos casos em que a ordem pública é
violentada. Essa coerção se mantém num sentido mais geral, como ameaça, uma
ameaça legítima, porém, que não deixa de existir, e a área do consenso é
deixada, por assim dizer, livre: a imprensa é livre, não há censura, os
partidos se organizam legalmente e competem livremente nas eleições, embora em
condições desiguais, pois os recursos de uns e outros não são os mesmos. Os
sindicatos também são livres: fazem-se greves, até certo ponto admitidas,
embora a repressão policial, em alguns casos, pratique agressões e até
assassinatos a líderes sindicais. A própria vida universitária recupera a sua
autonomia, funciona com um grau de liberdade consentâneo com a competição entre
as várias idéias. Aproximadamente, esta é a situação atual do Brasil.
Eu diria que nos
Estados fascistas ou nas ditaduras militares sul-americanas, como a que tivemos
no Brasil até poucos anos atrás, a coerção atinge um máximo, invadindo a área
da sociedade civil onde se processa o consenso. Nestes casos, não só a coerção
se torna exposta intervindo em tudo, generalizadamente, sem recuar diante dos
processos mais Korpes, a exemplo da tortura como invade a área do consenso. Então, a Imprensa é censurada, os
Partidos, como ocorreu na Argentina, são suprimidos ou só se permitem dois
Partidos, um da situação e outro da oposição. Foi o que se fez no Brasil. Os
Sindicatos são controlados de maneira rigorosa, as greves proibidas, as publicações submetidas à
censura, o mesmo ocorrendo com o cinema, o teatro, as diversas formas de
manifestação artística. A Universidade é mutilada: determinadas correntes de
pensamento são impedidas de se manifestarem dentro dela etc.
Assim, temos duas
situações típicas extremas: um mínimo ou um máximo de coerção com a
contrapartida de um máximo ou um mínimo de consenso.
Do Populismo ao Golpe Militar
Partindo desse
universo conceitual, vou fazer algumas considerações sobre a nossa História
recente, referindo-me primeiramente ao que se denomina em nossa literatura
sociológica e historiográfica como populismo. Via de regra, este termo tem sido
entendido como manipulação por parte de uma liderança carismática de massas
recém-urbanizadas, que vieram de áreas rurais ou pequenas cidades, ainda
destituídas de uma consciência autônoma no universo das grandes cidades.
Os aspectos da
manipulação e da liderança carismática existem, porém não são o fundamental do
fenômeno. O essencial e aqui desejo restringir-me ao caso brasileiro, visto ser este um
fenômeno internacional é que o populismo foi um processo de hegemonia
consensual da burguesia ascendente, a partir dos anos 30, para obter a
colaboração do nascente proletariado com vistas à construção da nação burguesa. Foi exatamente uma
política do próprio Estado, tendo no seu leme o primeiro e o maior dos
populistas Getúlio
Vargas. Getúlio acreditava que o populismo seria benéfico tanto para os
trabalhadores como para
a burguesia. Nos anos 30, dá-se início ao processo de transição da liderança da
burguesia agrário-exportadora de orientação antiindustrializante para a liderança de uma
burguesia industrial, que vai se afirmar já nos anos 30 e que irá crescer
celeremente nos anos 40,
até adquirir o domínio pleno nos anos 50, sobretudo no qüinqüênio de Juscelino
Kubitschek.
Esta burguesia
industrial, com seus políticos e estadistas populistas, conseguiu ganhar o
consenso em grau elevado dos trabalhadores urbanos para o projeto de uma nação
burguesa independente, através da industrialização. Assim, o populismo está
essencialmente associado ao projeto da industrialização burguesa no Brasil. É o
primeiro projeto político de hegemonia da burguesia brasileira. Hoje um projeto
abandonado, mas que serviu durante três décadas, dos anos 30 até o começo dos
anos 60. O populismo tanto pôde operar no regime autoritário do Estado Novo,
como no regime liberal da Constituição de 1946, portanto, sob as condições de
um regime parlamentar representativo.
E o que oferecia o
populismo aos operários? O paternalismo estatal, nas suas relações conflitivas
com o patronato. Os operários ganhavam uma legislação, que lhes permitia
defender alguns direitos perante os tribunais da Justiça do Trabalho. Os
trabalhadores deixavam de ser desamparados, mas, em troca, os Sindicatos
ficavam atrelados ao Ministério do Trabalho, e eram considerados órgãos de
colaboração com o poder estatal. Os Sindicatos perdiam assim a sua autonomia.
Os operários ganharam outras concessões: salário mínimo, previdência social,
conjuntos habitacionais, assistência médica etc. Tudo isso não deixou de
facilitar a obtenção do consenso dos trabalhadores, em relação ao Estado,
inicialmente à revelia da burguesia industrial que estava crescendo. Nesse
sentido, Getúlio Vargas tinha uma visão mais avançada do que os próprios
industriais, em sua grande maioria, com a exceção de homens como Roberto
Simonsen e poucos outros.
A título de referência
pessoal, eu me recordo que, ainda jovem, entrando no movimento antifascista, e
logo depois no movimento comunista, eu tinha aversão a Getúlio Vargas, que
personificava o Estado Novo. E me espantei depois, em 1945, ao notar que
Getúlio era popular, que dispunha de enorme prestígio entre os trabalhadores. O
movimento queremista de 1945 mostrava isto e, depois, a própria eleição
espetacular do ex-ditador. Quer dizer, o ditador odiado era um homem popular.
Ele não havia sido somente um ditador e exercido apenas a função da coerção,
mas havia exercido também a função do consenso. Havia conseguido o consenso de
grandes massas trabalhadoras, por ele arregimentadas para o Partido Trabalhista
Brasileiro, que chegou a ser o segundo maior partido brasileiro antes do golpe
de 1964.
Getúlio inicia a
industrialização nos anos 40, com a fundação de grandes empresas estatais. É
com ele que começa o setor estatal da economia com a indústria de base. São os
seus sucessores que vão levar esta industrialização adiante. O segundo governo
de Getúlio foi um prólogo do governo de Juscelino. Os grandes objetivos dos
planos de metas de Juscelino, como hoje se sabe, já haviam sido previamente
formulados por Getúlio, só que eram uma formulação precoce, numa época em que
ainda não estavam maduras as condições para que o País pudesse interna e
externamente implementar uma industrialização acelerada. Ainda não haviam
recursos internos suficientes e, do lado de fora, os países capitalistas
desenvolvidos vindo em
primeiro lugar os Estados Unidos não tinham a disposição de fazer pesados investimentos na indústria
brasileira. Os Estados Unidos eram francamente contrários à industrialização
acelerada do Brasil e a Europa ainda estava se recuperando da n Guerra Mundial.
Contudo, o Brasil já possuía um mercado interno atraente para o capital dos
países da Europa Ocidental e do Japão. O capital desses países investiu no
Brasil e obrigou o capital americano a mudar de posição e vir disputar uma
posição no investimento industrial dentro do Brasil. Com isso, o qüinqüênio
Juscelino pôde realizar aquele salto industrializante que, induscutivelmente,
mudou a qualidade da economia brasileira, e deu supremacia à indústria, já
acoplada com setores mais modernos -condizentes com os seus interesses no comércio e nas
finanças.
O governo de Juscelino
fez a industrialização de tal forma, que legou aos seus sucessores um elenco de
problemas cruciais. O Estado interveio na industrialização com inversões
maciças, que apelaram para a inflação, para a emissão de papel-moeda, o que, no
fundo, constituiu um imposto forçado, oneroso principalmente para a população
mais pobre. Ao mesmo tempo, as inversões de capital estrangeiro sob a forma de
empréstimos expandiram a dívida externa.
O governo sucessivo de
Jânio se viu a braços com os problemas imperiosos da inflação, da dívida
externa, da dificuldade de importação de bens essenciais, do déficit
orçamentário etc. Jânio tentou enfrentar tais problemas com uma renúncia, que,
no fundo, era uma manobra para obter maiores poderes em detrimento do
Congresso. Esta manobra fracassou e o poder veio ter às mãos de João Goulart,
discípulo direto de Getúlio e o último dos presidentes populistas.
No governo Goulart, há
todo um jogo atropelado para deter e anular o populismo, jogo no qual o próprio
Jango se compromete para dar uma saída - dentro do modelo recessivo do FMI à situação de
crise cíclica em que entrava a economia brasileira. A partir de 1962, a
economia começa a apresentar índices mais baixos de crescimento. 1963 é um ano
em que o produto per
capita decresce. A economia entra num período depressivo, que vai se prolongar
até o ano de 1967. Ao mesmo tempo em que a economia se debate em agudas
dificuldades, o populismo já não constitui uma receita adequada para a classe
dominante, porque ela não pode mais fazer concessões aos trabalhadores. Já
estes, diante da erosão do seu poder aquisitivo, fazem reivindicações cada vez
maiores, ao mesmo tempo que ganham experiência e consciência política. Os
trabalhadores começam a apresentar reivindicações que ultrapassam o universo
populista. Assim, o populismo vai sendo superado pela classe operária e pelos
trabalhadores em geral. Ao mesmo tempo, o populismo já era uma política
desvantajosa e inconveniente para a classe burguesa. O populismo devia por isso
mesmo ser descartado por uns e por outros.
Este é o drama, o
dilema do governo João Goulart, que vai ter um desenlace extremamente infeliz,
porque ao mesmo tempo em que o governo se debate com esses problemas, dá-se um
impetuoso crescimento do movimento pelas reformas de base. Não aprofundarei
aqui o que significou o movimento pelas reformas de base, hoje depreciado pelos
analistas porque terminou em derrota e não se costumam valorizar as derrotas.
Apesar de que, na História, há derrotas mais fecundas do que certas vitórias.
O movimento pelas reformas de base pôs em xeque a classe
dominante em três pontos fundamentais:
Em primeiro lugar,
questionou o princípio da propriedade privada. O movimento incentivou, pela sua
própria dinâmica, um grande número de invasões de terras pelos camponeses
despossuídos ou despejados de suas terras, em conseqüência do desenvolvimento
do capitalismo no campo. Quem estudar aqueles anos, poderá assinalar centenas
de casos de invasões de terras de Norte a Sul do País. Os camponeses entraram
impetuosamente no movimento social com as ligas camponesas e, logo em seguida,
com os Sindicatos Rurais, que se disseminaram por todo o País. Daí se originou
a luta pela reforma constitucional, de maneira que se tornasse viável a
desapropriação de terras para a realização da reforma agrária. É o intocável
princípio da propriedade privada da terra que é posto em xeque.
Em segundo lugar, o
domínio das multinacionais, o domínio do imperialismo. Neste particular, o fato
que considero mais significativo é a aprovação pelo Congresso da lei de remessa
de lucros em 1962. Foi uma lei que restringiu em 10% a remessa anual de lucros
pelo capital estrangeiro, considerando capital estrangeiro somente aquele que
efetivamente entrou no País. O capital estrangeiro reinvestido, originário de
lucros obtidos dentro do País, não contaria para as remessas de lucros e para
os dividendos. Isto seria limitar drasticamente a remessa de lucros. Não
conheço nenhum país capitalista em que uma lei tão radical houvesse sido aprovada.
João Goulart, por isto mesmo porque estava no jogo de adaptação com seus adversários, em que ele
próprio procurava frear o populismo , não sancionou a lei, deixando que ela o
fosse pelo Congresso. Tampouco regulamentou esta lei, depois de aprovada, impedindo assim que ela entrasse
em vigor. Jango só irá regulamentar a lei em janeiro de 1964, mais de um ano
após sua aprovação. Além disso, o movimento pelas reformas de base reivindicava
a encampação de refinarias particulares, das concessionárias estrangeiras de
serviços públicos, porque, naquela época, principalmente a eletricidade era
dominada por duas grandes concessionárias estrangeiras, a Light and Power e a
Amforp.
Em terceiro lugar,
porque foi posto em xeque o poder coercitivo do Estado. Surgiram, entrosados
com a luta pelas reformas de base, os movimentos dos sargentos das três Armas e
também de algumas Polícias Militares estaduais que acintosamente desrespeitavam
os regulamentos disciplinares. Seus representantes falavam em público nas assembléias
de estudantes, nos Sindicatos e adotavam os pontos de vista nacionalistas e
democrático-radicais. E mais o movimento dos marinheiros e fuzileiros navais,
que fundaram uma associação considerada ilegal pelo Ministério da Marinha.
Marujos e fuzileiros navais também apresentavam reivindicações de caráter
profissional e de caráter político. Esta indisciplina, inusitada durante dois
anos ou mais, aprofundou-se dentro das Forças Armadas e abalou o poder
coercitivo máximo do próprio Estado. Além da atuação, que não se pode deixar de
mencionar, da oficialidade nacionalista, incluindo almirantes e generais,
ostensivamente ao lado do movimento pelas reformas de base.
Isto, é claro,
provocou uma reação autopreservadora nas Forças Armadas, porque, como instituição
total, elas tendem à autopreservação, baseada nos princípios da disciplina
rígida e da hierarquia, da subordinação incondicional dos graus mais baixos aos
graus mais altos dentro da escala profissional.
Nessas condições, não
é preciso dizer que o golpe militar de 1964 foi vitorioso, pois todos já sabem.
O que é importante assinalar aqui é a mudança de orientação política
fundamental, então ocorrida. O significado da ditadura militar, iniciada após o
golpe, foi a eliminação definitiva do populismo consensual e o realce do
elemento de força, de coerção do Estado. A coerção exacerbou-se e chegou a um
ponto extremo, ficando o consenso como um resíduo. No processo de avanço da
ditadura, da vitória golpista de 1964 até o AI-5 de 1969, a Imprensa foi
submetida à Censura, os jornais oposicionistas foram calados ou deixaram de
circular. A Universidade foi invadida, mutilada, aleijada, numerosos
professores foram compulsoriamente aposentados e coagidos a saírem do País.
Artistas foram coibidos e também obrigados a saírem do País. Cerca de dez mil
funcionários públicos civis e militares foram alijados por processos
administrativos, IPMs ou suspensão de direitos políticos. Parlamentares eleitos
pelo voto popular também sofreram este processo de expurgo. Governadores perderam
os mandatos nos seus estados. Enfim, dá-se a coerção discricionária, sem
limites, pois, desde 1964, inicia-se a prática do terrorismo de Estado, com as
prisões arbitrárias e torturas. Assim, se estabelece no País uma ditadura
militar sem que isto fosse previsto por muitos dos protagonistas do golpe.
Porque, não é correto dizer, que todos os participantes ou os principais
participantes do golpe militar quisessem desde o início uma ditadura militar
duradoura. Alguns deles nem pensaram nisso, e concordoram inicialmente que as
Forças Armadas assumissem o poder, mas pensavam num poder ditatorial no seu
exato sentido filológico, ou seja, de breve duração. Imaginavam que, depois de
feita a limpeza do terreno, as Forças Armadas revertessem o poder aos civis,
com a realização de eleições presidenciais. Assim pensavam, pelo menos, Carlos
Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto, protagonistas do golpe. Mas
aconteceu algo diferente. Mesmo dentro das Forças Armadas não era intenção, ao
menos de um estadista como Castelo Branco, que se precisasse de uma ditadura de
longa duração. Mas o que aconteceu foi exatamente isso. Não fomos com ela até o
ano 2000, como pretendeu prof. Alfredo Buzaid. Não tivemos uma ditadura militar
com duração tão prolongada mas, assim mesmo, durou 21 anos. Para isso, ela
recebeu toda uma doutrinação, da qual a matriz principal veio na doutrina da
Segurança Nacional elaborada na Escola Superior de Guerra. Esta doutrina
forneceu o simulacro de legitimação para a sua vigência. A ditadura militar não
foi, no entanto, regressiva, e sim modernizadora, como havia sido o Estado
Novo. Ela seguiu aquilo que se chamou de modernização conservadora, termo
cunhado por Barrington Moore. De um lado, o arrocho salarial, como pedra de
toque da política econômica, junto a toda uma série de outras medidas, com a
correção monetária, que ensejou o nascimento do mercado de capitais, bem como
novas fontes de financiamento estatal, permitindo ao Estado voltar a ser um
grande investidor. Por outro lado, a reversão do ciclo econômico, com os anos
do chamado "milagre brasileiro", como o apelidou a Imprensa
internacional.
Estes cinco ou seis
anos de "milagre brasileiro", de altíssimas taxas de crescimento
econômico, constituíram uma característica específica da ditadura militar
brasileira na América do Sul. Foi uma fase de alta conjuntural, que não ocorreu
na Argentina, nem no Chile e no Uruguai. Não quero me referir ao Paraguai,
porque ali há uma ditadura tradicional e não, por assim dizer, eventual.
Este "milagre econômico"
tirou toda ou quase toda a base social da esquerda armada daquela época. A
vitória do golpe militar de 64 não encontrou resistência, porque o presidente
João Goulart evitou a luta e capitulou, por temer que a ela se radicalizasse e
ele perdesse o controle, o que poderia colocar a ordem burguesa em situação
precária. Uma vez que as esquerdas confiaram na liderança de João Goulart, o
que houve foi inação.
As esquerdas, em sua
grande parte, entenderam que deveriam reagir com a ditadura já consolidada, com
as Forças Armadas expurgadas de seus elementos rebeldes. Sem o movimento dos
sargentos, dos marinheiros, dos generais e oficiais nacionalistas, e com a
coerção já estabelecida no seu grau máximo.
Em tais
circunstâncias, a tese da violência revolucionária incondicionada, da violência
não-submetida às determinações históricas, ganhou grande parte da consciência
das esquerdas, fazendo com que mergulhassem na luta armada. Primeiramente na
guerrilha urbana, depois na rural e em condições tão desfavoráveis que
dificilmente seria admissível e viável uma vitória.
É claro, dizemos isto
depois que tudo ocorreu, já fazendo parte da História. Quem entrou na luta
pensava na vitória e tinha confiança nela, teorizava sobre a grande
possibilidade dessa vitória e empenhou a vida para que ela se concretizasse.
Mas hoje nos cabe examinar as coisas com uma visão crítica que procura as
raízes daqueles fatos, sucedidos dentro de determinado contexto político,
econômico e ideológico.
Perspectivas Presentes
Devo dizer, agora,
alguma coisa do que está se passando atualmente. Assim, passarei por cima de
toda a fase do regime militar, porque não estarei informando nada de novo sobre
o fato de que, em certo momento, o último general-presidente foi substituído
por um civil na Presidência da República Civil que, por sinal, foi um dos
políticos mais eminentes do próprio regime militar. Hoje vemos que, após a
recessão de 1981 a 1984, em que a economia brasileira submergiu numa fase de
índices negativos, passamos à recuperação de 1985-86 e em 1987 voltamos a uma
nova fase recessiva. O que, sem dúvida, traz uma conotação de dificuldades, de
contradições e de prenúncios críticos.
O que é que podemos
sentir das reações das diversas classes sociais neste momento, dentro da
temática que aqui procurei desenvolver?
Da parte da classe
dominante burguesa, é incontestável que ela não pretende, de forma alguma,
voltar a qualquer tipo de política populista; o populismo pertence ao passado.
Tanto assim, que o último dos populistas, Leonel Brizola, é um homem malsinado,
que deve ser isolado e mantido numa espécie de gueto político, com um pequeno
partido, sem possibilidade de atingir aquele objetivo em que teimosamente se
fixa, que é chegar à Presidência da República. Por quê? Será que Leonel Brizola
por si mesmo seria um inimigo? Nem tanto, penso eu, porque se examinarmos hoje
o discurso de Brizóla, vamos notar dilatadas mudanças com relação ao seu
discurso pré-64. Naquela época, Brizola foi um homem que desapropriou quando governador
do Rio Grande do Sul duas companhias concessionárias de serviços públicos norte-americanos, a ITT e
a subsidiária da Amforp. O que levou a uma reação drástica do Congresso
norte-americano. A linha de comunicação de Brizola com o seu público era
radical, era uma pregação antiimperialista e antilatifundiária radical. E hoje,
o que prega Leonel Brizola? Ele prega um programa cujo primeiro item é o leite
das criancinhas, ou seja, a construção de CIEPEs para tirar as crianças das
ruas e lhes dar alimentação durante o dia inteiro, educação etc. Trata-se de um
objetivo que não podemos reprovar, porém não deve ser isolado de objetivos que
têm em vista transformações estruturais da sociedade. Sem tais transformações,
o leite das criancinhas será algo episódico e muito limitado.
O que temem as classes
dominantes com Brizóla na Presidência da República é o que viria após. Porque,
depois de um populista, o que poderá vir? Só poderá ser alguém mais radical.
Mesmo um populista atenuadíssimo, como é Brizóla, se fracassar na contenção das
massas, teria que dar lugar a uma composição social que levasse o País por um
caminho de transformação política e social avançada. Assim, o populismo é uma
opção descartada para as classes dominantes. O que elas têm em vista, na
situação atual, é o projeto de sociedade em que os trabalhadores aceitassem e aqui entra o
consenso o capitalismo, de tal maneira que eles se considerassem sócios dos
empresários. Os empresários terão sua parte sob a forma de lucros como
empresários e os trabalhadores terão sua parte sob a forma de salários como
trabalhadores. É o que
tem sido chamado de sindicalismo de negócios ou de resultados, em que os
trabalhadores disputam seu quinhão, desde que não se proponham a uma política
de transformação social. Pode ser a política dos sindicatos norte-americanos,
como pode ser a política da social-democracia européia.
Do ponto de vista da
estrutura fundiária, da estrutura de propriedade agrária, o que se vê é que a
classe dominante não pretende fazer absolutamente nenhuma concessão. Hoje, o
que há de legislação agrária, no governo Sarney, encontra-se atrás do Estatuto
da Terra, aprovado como lei pelo general Castelo Branco, o primeiro dos
generais-presidentes da fase ditatorial. O que vemos, neste particular, por
parte de setores expressivos dos proprietários de terra, é o propósito de
abolição dos mínimos direitos dos trabalhadores rurais.
O processo eleitoral,
como sabemos, deu origem a uma Constituinte de maioria conservadora. Esta
Constituinte tem realizado seus trabalhos em meio a uma mobilização dos vários
estratos sociais como não houve em nenhum caso das outras constituintes de
nossa história. Neste sentido, recordo que a Constituinte de 1946 foi centro
dos debates políticos e os temas discutidos nas comissões e no plenário
recebiam repercussão na imprensa. Em poucos casos, todavia, houve mobilização
de entidades populares, mobilização realmente expressiva. Não existia ainda,
naquela época, esta rede, já significativa, de entidades de base, de bairro,
sindicais, eclesiais, e de várias outras correntes que se formaram nestes
últimos anos no País. Empresários urbanos e proprietários de terras, muitas
vezes os mesmos do ponto de vista das firmas ou pessoas jurídicas, já não
confiam somente nos políticos e nos seus Partidos, que eles ajudaram a eleger,
e encarregam entidades corporativas de representá-los no plano político. Assim,
no caso dos proprietários de terras, sobressaem a Sociedade Rural Brasileira e
a União Democrática Ruralista, surgida exatamente em tempos recentes, com uma
atuação extremamente agressiva, na defesa da intocabilidade de todos os
privilégios da propriedade rural. No caso dos empresários propriamente urbanos
da indústria e dos setores comerciais bancários, financeiros etc., criou-se a
União Brasileira dos Empresários, como sua principal e mais autêntica
representante, não só no plano corporativo, mas também no próprio plano
político. Se levarmos em conta o início de um ciclo recessivo agora, as enormes
dificuldades do governo Sarney para conter os efeitos do início de recessão,
como, por exemplo, o processo inflacionário recrudescente e o agravamento da
questão da dívida externa, os atritos com os interesses imperialistas
norte-americanos e a própria falência política e moral, se considerarmos todos
estes fatores, estaremos dentro de um quadro em que possibilidade de um novo
golpe militar se torna objeto de conjectura. Aí está para confirmá-lo a
revivescência da direita, que volta a se mobilizar e que afrontosamente se
manifesta, não nos conciliábulos secretos, mas nas associações registradas em
cartório de entidades velhas e novas com figuras também velhas e novas.
Isso seria uma
demonstração da incapacidade da classe dominante burguesa de governar senão
pela coerção extremada? Da sua incapacidade de governar através de um regime
que permita margem consensual ampliada, um regime democrático, em que as
classes subalternas também possam competir e disputar ideologicamente com a
classe dominante?
Esta é uma pergunta
que apenas lanço, porque não pretendo ter a resposta para ela. Não penso,
tampouco, que estejamos diante de desenlaces inevitáveis, mas diante de um
leque de probabilidades. Creio que o que há de mais perspicaz na classe
dominante seus
políticos mais clarividentes compreende a temeridade que seria a reversão
para a coerção extremada por uma segunda vez, neste final do século XX. Porque a ditadura militar
instaurada em 1964 pôde se retirar do proscênio através de uma transição que
não eliminou a tutela militar e que não arranhou a imagem das Forças Armadas,
não lhes tirou nenhuma das prerrogativas adquiridas, exceto a de se
apresentarem como patronos ostensivos do País. Os políticos mais perspicazes da
classe dominante consideram a reversão uma solução temerária. Consideram que a
solução mais condizente com seus próprios interesses seria a de prosseguir no
processo da democracia representativa, com uma Constituição conservadora. Um
conservadorismo que chamarei de moderado, porém que permitirá certo grau de
competição ideológica entre a classe dominante e as classes subalternas, nos
quadros democrático-burgueses.
Não há duvida, fica a
indagação de qual a perspectiva que, no final das contas, prevalecerá. De
qualquer forma, a única coisa que posso prefigurar, ou desejar que assim seja,
é a de que a esquerda, se tiver de enfrentar futuros ciclones, futuras
reversões coercitivas, saia deste processo, não enfraquecida como saiu em 1985,
consideravelmente enfraquecida pela derrota em 1964 e pela derrota da luta
armada de 1968 a 1974. Pelo próprio processo social dos últimos anos, pelo
amadurecimento de suas lideranças, pelo aprendizado com as derrotas históricas,
pois as derrotas servem para ensinar, esta esquerda poderá sair fortalecida, e
capaz de iniciar um processo realmente profundo de transformação social.
Jacob
Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante do IEA em
1989.
“Eu
diria que nos Estados fascistas ou nas ditaduras militares sul-americanas, como
a que tivemos no Brasil até poucos anos atrás, a coerção atinge um máximo,
invadindo a área da sociedade civil onde se processa o consenso.
O
significado da ditadura militar, iniciada após o golpe, foi a eliminação
definitiva do populismo consensual e o realce do elemento de força, de coerção
do Estado”
in www.revistas.usp.br › Capa › v. 2, n.
3 (1988) › Gorender
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