Locke - Os princípios da tolerância e os Dois Tratados sobre o Governo civil
Locke - Os princípios da tolerância e os Dois Tratados sobre o Governo
civil
Locke publicou a Carta sobre a Tolerância, os Dois
Tratados sobre o Governo Civil e o Ensaio sobre o Entendimento
Humano. A primeira Carta sobre a Tolerância causou muita polêmica e Locke
escreveu outras três. Nelas, advoga a liberdade de consciência religiosa (um
dos principais temas políticos da época), sustentando a tese de que o Estado
deveria apenas cuidar do bem-estar material dos cidadãos e não tomar partido de
uma religião. O Primeiro Tratado sobre o Governo Civil combate, ironicamente, a
tese de sir Robert Filmer (1588-1653), defensor do absolutismo dos Stuart,
segundo a qual os monarcas reinantes remontavam seu poder a Adão e Eva. O
Segundo Tratado do Governo Civil desenvolve as teses políticas liberais de
Locke. O Ensaio Sobre o Entendimento Humano seria sua obra mais importante, do
ponto de vista estritamente filosófico.
Estado natural e liberdade
A teoria do conhecimento exposta no Ensaio sobre o Entendimen¬to Humano
constitui uma longa, pormenorizada e hábil demonstração de uma tese: a de que o
conhecimento é fundamentalmente deri¬vado da experiência sensível. Fora de seus
limites, a mente humana produziria por si mesma, ideias cuja validez residiria
apenas em sua compatibilidade interna, sem que se possa considerá-las como
expres¬são de uma realidade exterior à própria mente.
As teses sociais e políticas de Locke caminham em sentido paralelo.
Assim como não existem ideias inatas no espírito humano, também não existe
poder que possa ser considerado inato e de origem divina, como queriam os
teóricos do absolutismo. Antes, Robert Filmer (1588-1653), autor de O
Patriarca, e um dos defensores do absolutismo, procurara demonstrar que o povo
não é livre para escolher sua forma de governo e que os monarcas possuem um
poder inato. Contra O Patriarca, Locke dirigiu seu Primeiro Tratado sobre o
Governo Civil; depois desenvolveu suas ideias no Segundo Tratado. Neles, Locke
sustenta que o estado de sociedade e, consequentemente, o poder político nascem
de um pacto entre os homens. Antes desse acordo, os homens viveriam em estado
natural.
A tese do estado natural e do pacto social também fora defendi¬da por
Thomas Hobbes (1588-1679), mas o autor de O Leviatã tinha objetivos
inteiramente opostos aos de Locke, pois pretendia justificar o absolutismo. A
diferença entre os dois resultava basicamente do que entendiam por estado
natural, acarretando diferentes concepções sobre a natureza do pacto social e a
estrutura do governo político.
Para Locke, no estado natural "nascemos livres na mesma medida em
que nascemos racionais". Os homens, por conseguinte, seriam iguais,
independentes e governados pela razão. O estado natural seria a condição na
qual o poder executivo da lei da natureza permanece exclusivamente nas mãos dos
indivíduos, sem se tornar comunal. Todos os homens participariam dessa
sociedade singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razão. No
estado natural todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a
humanidade e evitar ferir os direitos dos outros.
Entre os direitos que Locke considera naturais, está o de proprie¬dade,
ao qual os Dois Tratados sobre o Governo Civil concedem
especial destaque. O direito à propriedade seria natural e anterior à sociedade
civil, mas não inato. Sua origem residiria na relação concreta entre o homem e
as coisas, através do processo de trabalho. Se, graças a este, o homem
transforma as coisas — pensa Locke —, o homem adquire o direito de propriedade:
"Todo homem possui uma propriedade em sua própria pessoa, de tal forma que
a fadiga de seu corpo e o trabalho de suas mãos são seus". Assim, em lugar
de opor o traba¬lho à propriedade, Locke sustenta a tese de que o trabalho é a
origem e o fundamento da propriedade. As coisas sem trabalho teriam pouco
valor, e seria mediante o trabalho que elas deixariam o estado em que se
encontram na natureza, tornando-se propriedades.
Vivendo em perfeita liberdade e igualdade no estado natural, o homem,
contudo, estaria exposto a certos inconvenientes. O principal seria a possível
inclinação no sentido de beneficiar-se a si próprio ou a seus amigos. Como
consequência, o gozo da propriedade e a conservação da liberdade e da igualdade
ficariam seriamente ameaça¬dos.
Justamente para evitar a concretização dessas ameaças, o ho¬mem teria
abandonado o estado natural e criado a sociedade política, através de um
contrato não entre governantes e governados, mas en¬tre homens igualmente
livres. O pacto social não criaria nenhum di¬reito novo, que viesse a ser
acrescentado aos direitos naturais. O pacto seria apenas um acordo entre
indivíduos, reunidos para empregar sua força coletiva na execução das leis
naturais, renunciando a execu¬tá-las pelas mãos de cada um. Seu objetivo seria
a preservação da vida, da liberdade e da propriedade, bem como reprimir as
violações desses direitos naturais. Em oposição às ideias de Hobbes, Locke
acre¬dita que, através do pacto social, os homens não renunciam aos seus próprios
direitos naturais, em favor do poder dos governantes.
Na sociedade política formada pelo contrato, as leis aprovadas por mútuo
consentimento de seus membros e aplicadas por juízes imparciais manteriam a
harmonia geral entre os homens. O mútuo consentimento colocaria os indivíduos,
que se incorporam através do pacto, "em condições de instalar a forma de
governo que julguem conveniente". Consequentemente, o poder
dos governantes seria outorgado pelos participantes do pacto social e,
portanto, revogável. Hobbes achava que a rebelião dos cidadãos contra as
autoridades constituídas só se justifica quando os governantes renunciam a usar
plenamente o poder absoluto do Estado. Contra essa tese, Locke justifica o
direito de resistência e insurreição, não pelo desuso, mas pelo abuso do poder
por parte das autoridades. Quando um governante se torna tirano, coloca-se em
estado de guerra contra o povo. Este, se não encontrar qualquer reparação, pode
revoltar-se, e esse direito é uma extensão do direito natural que cada um teria
de punir seu agressor. Para o homem, a razão de sua participação no contrato
social é evitar o estado de guerra, e esse contrato é quebrado quando o
governante se coloca contra o povo. Mediante o pacto social, o direito
legislativo e executivo dos indivíduos em estado de natureza é transferido para
a sociedade. Esta, devido ao próprio caráter do contrato social, limita o poder
político. O soberano seria, assim, o agente e executor da sobe¬rania do povo.
Este é que estabelece os poderes legislativo, executivo e judiciário. Locke
distingue o processo de contrato social — criador da comunidade — do
subsequente processo pelo qual a comunidade confia poder político a um governo.
Esses processos podem ocorrer ao mesmo tempo, mas são claramente distintos;
embora contratual¬mente relacionados entre si, os integrantes do povo não estão
contra¬tualmente submetidos ao governo. E o povo que decide quando ocorre uma
quebra de confiança, pois só o homem que confia poder é capaz de dizer quando
se abusa do poder.
Com suas ideias políticas, Locke exerceu a mais profunda influên¬cia
sobre o pensamento ocidental. Suas teses encontram-se na base das democracias
liberais. Seus Dois Tratados sobre o Governo Civil justificaram a revolução
burguesa na Inglaterra. No século XVIII, os iluministas franceses foram buscar
em suas obras as principais ideias responsáveis pela Revolução Francesa.
Montesquieu (1689-1755) inspirou-se em Locke para formular a teoria da
separação dos três poderes. A mesma influência encontra-se nos pensadores
americanos que colaboraram para a declaração da Independência Americana, em
1776.
Locke, John, 1632-1704
Anoar Aiex, SP : Nova Cultural - 1988 (Col Os Pensadores)
O contrato social segundo John Locke
A reflexão política de Locke, escrita
nos Dois Tratados sobre o Governo Civil, apresenta-se como uma
teoria que justifica a existência da propriedade privada como um direito
natural, que não pode ser violado. E a principal finalidade de se constituir um
Estado e de se organizar um governo é a preservação da propriedade, da qual, o
cidadão somente poderá ser alienado mediante adequada indenização no valor de
mercado da região e sob a constatação legal da necessidade pública. Com o
trabalho, o homem transforma a terra e dela se apropria, assim como de outros
bens. Com o surgimento e ampliação das relações de troca e o advento do
dinheiro, criam-se as condições de acumulação ilimitada de propriedade e de
desigualdade entre os homens – os proprietários cidadãos de um lado e os não
cidadãos de outro. A propriedade se transforma, dada a sua importância no
pensamento liberal burguês, na garantia de afeição à coisa pública, pois o
proprietário está interessado em sua boa gestão. Ou como registra a
Enciclopédia: “Todo homem que possui no Estado, é interessado no bem do
Estado”.
A situação de risco e insegurança
gerada pela falta de leis que estabeleçam o justo e o injusto e instaurem as
condições para resolver as controvérsias causadas pela violação da propriedade
leva os homens a se unirem. A instauração do Estado a partir do contrato social
se faz com base no consentimento, para que o corpo político instituído exerça a
função de garantir a vida, a liberdade e, principalmente, o direito natural à
propriedade.
No Estado de Natureza, onde os
indivíduos possuem liberdade natural, o homem se apossa de partes da natureza,
tendo como fim a produção para a sua conservação e a de seu grupo. É nesse
momento, em que cada indivíduo apropria-se daquilo que é necessário para
subsistência, que se instaura o direito de propriedade. Desse modo, Locke
entende que o direito de propriedade precede o nascimento do Estado Civil,
sendo esse um direito natural e individual.
Locke estabelece que cada pessoa tem
direito à propriedade que conquistar com o próprio trabalho, e que seja
necessário para sua sobrevivência, isto é, que não seja excessivo aquilo que o
proprietário possa cuidar.
O direito à propriedade é um direito
inalienável. Temos o direito de trabalhar com o nosso próprio corpo também. O
esforço desse trabalho gera bens, e esses bens se tornam nossas propriedades.
Depois é necessário proteger a propriedade, e, para isso, transfiro esse poder,
mediante um contrato social com os demais indivíduos, a uma esfera superior que
é capaz de julgar imparcialmente possíveis conflitos.
Em síntese, o ser humano, para Locke,
aceita submeter-se a viver em sociedade para, acima de tudo, defender a sua
propriedade, o seu interesse.
Uma diferença entre Hobbes e Locke no
que se refere ao conceito de Estado, é que para Locke, até o governante deve se
submeter às leis instituídas como qualquer outro cidadão, enquanto que para
Hobbes, o governante é um monarca absoluto em cujas mãos todo o poder se
centraliza, portanto, não deve se submeter às leis como qualquer indivíduo da
sociedade.
Enquanto para Hobbes o pacto concede
o poder absoluto e indivisível ao soberano, ao qual deve se subordinar tanto o
executivo quanto o poder federativo (encarregado das relações exteriores).
A concepção ampla de liberdade leva,
entretanto, a certas contradições, pois o direito à ilimitada acumulação de
propriedade produz um desequilíbrio na sociedade, criando um estado de
desigualdade que Locke acaba por dissimular em um discurso de caráter de
universalidade. Quando se refere a todos os cidadãos, considerando-os
igualmente proprietários, o discurso contém uma ambiguidade, porque todos,
possuindo bens ou não, são considerados membros da sociedade civil, mas apenas
os que têm fortuna podem ter plena cidadania. Ou seja, segundo Locke, os
proprietários de bens são os que estariam interessados e capacitados para
preservar as riquezas acumuladas.
Ressalta-se desse modo o elitismo que
persiste na raiz do liberalismo, já que a igualdade defendida é de natureza
abstrata, geral e puramente formal. Não há possibilidade de igualdade real,
quando só os mais ricos têm plena cidadania.Fonte: ARRUDA, M. L., MARTINS, M.
H. P. 1988, p. 305.
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